quinta-feira, 22 de abril de 2010

HOTEL DE ESTRANGEIROS

Uma alma fragmentada, o que fazer senão voltar a um provável início? A vela acesa, a chama ilumina a casa para dali promover não fatos, mas estados alterados d´alma. A música foi ganhando tudo e, a cada passo dado, um cheiro de infância, infância não nostálgica, mas historial. A cidade pequena foi a única a dar sensações profundas para aquela mente quase decapitada pela vida prática e quase estéril da cidade mais agitada da província.

A casa do Senhor da Estação estava intacta e agradavelmente velha. Olhando aquela sala, a mesa sem pintura, as velas, as cortinas encardidas tremulando pelo vento trazido pelos trens; era um grande retorno n´alma.

Para a sua geração, a moça estava distante dos tipos que a época proporcionava. Muito pensativa e centrada para as tagarelas da província e sagaz para as cortesãs dos senhores. Vivia como um ser distante, como um ponto de chegada e partida, talvez influenciada pela infância na casa do Senhor da Estação.

Ali, quando criança, corria para a estação logo quando ouvia o apito do trem e olhava atenta os vagões e suas cargas, seus caixotes, suas malas de madeira. Os passageiros trazendo o olhar distante e triste de quem deixou alguma coisa para trás. Aqueles crianças sentadas sobre os caixotes , as mães a olhar para o tempo interrogativas e os homens aquecendo o corpo com aguardente de cana. Era interessante, nenhum ficava completamente ébrio, não se deixavam ficar, e assim que ficavam com os corpos ardentes, tomavam suas bagagens e quase sempre comentavam que iam conseguir.

Como ela olhava invejada para aqueles meninos que corriam astutamente para pongarem no trem - como queria fazê-lo. Mas não podia, morava na casa do Senhor da Estação. E, além, era uma menina, todos reprovariam.

Olhando a estação através da janela, da música, das velas, ela retomava a mesma emoção que lhe preenchia quando antes da sua primeira despedida. E era pra isso que tinha voltado, para recobrar o impulso, a determinação que havia perdido para voltar e lançar-se em um mundo afiado. Queria recobrar esse impulso, já que ela agora estava arrefecida, desintegrada, quase decapitada.

Só através daqueles cômodos, daquela estação, estaria recobrando a sua própria história e um motivo para estar viva, confiante, altiva.

Foi na casa do Senhor da Estação que determinou-se a não servir como cortesã nem para conviva provinciana. Tomou sua valise e adentrou o vagão mais simples do trem onde todos falavam alto dos seus próprios planos de partida e dividiam alimentos. Todos rumavam para São Carlos, a capital da província. Foi naquele vagão que soube do Hotel de Estrangeiros e na chegada a São Carlos se dirigiu para lá.

Sabia muito bem o que buscava em São Carlos: queria lançar-se às letras ou dar a vida por uma causa. Como a Madame Juju havia sido cordial para com ela no Hotel dos Estrangeiros. Aproveitando o abrigo, começou a pensar numa forma de conseguir uma colocação já que não trazia consigo uma carta de recomendação. Ali, na cidade de São Carlos, exceto no Hotel de Estrangeiros, não passava de uma forasteira.

Dia e noite tomava a sua mente a necessidade de trabalhar para se manter. E, aos poucos, a pretensão de se dedicar às letras ia ficando longe, como o trem e a casa do Senhor da Estação. Apesar de no Hotel de Estrangeiros passarem muitos jovens intelectuais, nada conseguia para si como uma colocação. Já devia dois meses a sua vaga, mesmo, se achava angustiada e sem forças para buscar. A sua alegria havia partido e apesar das fonfarrônicas conversas no Hotel, já não encontrava motivo para contentar-se. E, o que, a princípio, achava gracioso e erudito nos jovens que ali frequentavam, agora lhe parecia falso e grosseiro, já que todos ali eram filhos bem nascidos das famílias dos Gerais. As moças, apesar de conhecedoras dos assuntos da época, ainda se apressavam a enfeitar-se e abluir-se para os jovens educados e gentis.

E ela não contava com ninguém, além da simpatia gratuita da Madame Juju. Agora, a única coisa que podia fazer era recordar os olhos tristes, a capa preta do Senhor da Estação e suas palavras: "para os que sofrem: a sua terra de origem". Mas para ela seu lugar de origem eram os trens indo e vindo. O vento ainda soprava as cortinas e, como quando menina nas noites de luar, ela abria as janelas e tocava um velho bandoneon, ela contemplava a noite na estação, a capa do Senhor e seus olhos tristes arrancando pra si inspiração para a vida.

Nos outros aposentos do Hotel de Estrangeiros comentavam-se que ela enlouquecera. Ela, os trens, os olhos e a capa preta do Senhor da Estação.

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