A política de drogas brasileira segue proibicionista.
Isso significa que mantém as bases repressivas, moralistas e seletivas contra
determinados segmentos da sociedade (o que denota o corte racista e higienista
que marca o proibicionismo
Thiago Rodrigues - professor adjunto no Departamento de
Estudos Estratégicos e Relações Internacionais da Universidade Federal
Fluminense
Quando escopetas,
pistolas automáticas e cassetetes estão violenta e decididamente voltados para
sua cara, ainda que você saiba todos os instrumentos legais que lhe protegem, o
silêncio vem como resultado do medo, da impotência e de uma revolta confusa.
Casa de
periferia, ali se ajeitam em dois ou três cômodos, que servem simultaneamente como quarto, sala, cozinha
e banheiro, um grupo de jovens - pedreiros, empregadas domésticas,
desempregados ou profissionais de
serviços precários, insalubres, inseguros, mal pagos. Os blocos estão à mostra,
sem reboco, portas e janelas existem por uma questão quase que simbólica, pois
não oferecem algum tipo de privacidade ou segurança. O ambiente é calorento e
uma ansiedade paira no ar potencializando um
desconforto constante.
É uma
tarde de um dia útil qualquer. Pouco importa, o cenário se repete. Pelas
redondezas mercadinhos, igrejas de várias congregações, lojas de material de
construção, botecos, mototaxistas, crianças correndo, homens embriagados,
mães, e os cuidadores da vida alheia. Nenhuma praça. Nenhum lazer gratuito e de
qualidade à vista. Atividades artísticas e culturais?! O que é isso? No ar
ouve-se uma música que vários acompanham efusivamente: "(...) quem nunca namorou, quem nunca fez amor, no carro,
no carro, tomou umas e
outras e deu uma fugidinha, no carro, no carro (...) carro parado com vidro
embaçado, cuidado, cuidado, é motel disfarçado". Ainda que carro, motel, e "fugidinha"
sejam significantes com significados difusos para a maioria.
Em um sofá rasgado e sujo na "sala", um
grupo compartilha o mal estar da fissura, da abstinência - os cinco
ou 10 contos que aparecem com muito custo, desaparecem rapidinho com uma droga
"miada e fraca" (sic), mas que continuam desejando por ser a única
disponível na área. Reclamam que nem mesmo tem um goró (cachaça) ou uma pacaia (fumo artesanal) para "destilar". Conversando
um pouco mais, descobrem-se as mágoas profundas de cada um ali. De repente,
chegam um ou outro, com os tais cinco ou 10 contos que conquistaram em alguma
diária, biscate ou reciclagem, e vão ali por não terem um espaço melhor para
usarem a droga. Inevitável, o entra e sai são constantes. A vizinhança está
ligada. A vizinhança vigia, controla, delata, pune.
Na cabeça de muitos, aquele contexto não se trata de um grupo
tentando algum escapismo frente a uma situação agressiva, para o senso comum
são sub-cidadãos que justificam aprioristicamente qualquer
ato que infrinja até mesmo as garantias constitucionais elementares
da sociedade burguesa.
Não há armas, nem grande quantidade de droga. Mas por
desinformação, questões de fundo psíquico ou incapacidade de diálogo, qualquer
motivo fútil dá origem a bate-bocas e até mesmo a agressões físicas. Na
própria condição que trazem de incomunicabilidade, divergências sempre resvalam de pronto
para uma agressão verbal expressa por um vocabulário escasso e repetitivo. A
gritaria, então, extrapola a porta e a janela franzinas. A vizinhança está a
cada momento mais atenta como quem espera pelo grande desfecho de um filme de
terror. A vizinhança já conhece bem o perfil desses personagens - eles
alimentam o café da manhã, o almoço e o jantar de noticiosos em
rádios, TVs e jornais
impressos - garantem uma audiência sedenta pelo linchamento moral público dos
que de uma forma ou de outra ficam de fora do espólio de séculos da pilhagem
na terra brasilis.
Demorou! Após desferir um chute na porta, entra no cubículo o
comandante da operação de arma em punho como quem está a atuar ao lado de Arnold Schwarzenegger. Com ele, um séquito de cerca de três
homens fortemente armados. Um rapaz de seus 28 anos, ajudante de pedreiro e de
origem camponesa, é o mais visível no dispositivo cênico do tal sofá, é,
coincidentemente (?), o mais franzino e de pele mais intensamente negra. Após
ouvir o berro "cadê a droga, cadê as armas?", leva no peitoral
vários sopapos de um soldado aparentando medir 2 metros e físico de
lutador de jiu-jítsu, que fez questão de deixar bem claro que não estava ali
para ouvir respostas ou explicações. A cada tentativa de identificar-se, de
demonstrar laços familiares ou outros laços sociais, o policial irritava-se
mais e mais, os socos no peitoral do rapaz usuário de droga tornavam-se mais e
mais agressivos. As falas tentando colocar-se como portador de alguma
identidade e pertencimento social provocavam na tropa rompantes tais como:
"você não é nada", "você é um verme", "não cite o nome
da sua mãe", "vagabundo", "cala a boca" e lá iam mais
sopapos.
Ato contínuo, o comandante adentra o que seria o quarto do
casal - na verdade um espaço que apenas identificava de forma ainda mais
intensa a vida caótica e desestruturada dos moradores, pois era uma mistura de
depósito de roupas sujas, de revistas velhas, garrafas plásticas vazias, restos
de comida, bitucas de cigarro, cachimbos apropriados ao uso do crack, e outras coisas que sob um estado de
espírito acuado pela arbitrariedade policial não se é capaz de
perceber. O comandante atuava como se estivesse numa grande operação à captura
de algum capo di tutti
i capi, de algum Matteo Messina Denaro da
máfia siciliana, um grande chefão, um super narcotraficante. O que havia realmente eram resquícios de consumo
droga - sobras da substância e cachimbos - nada que se configurasse como
tráfico de drogas, e um grupo de jovens periféricos acuados.
O universo que cerca o usuário
de crack estrutura-se quase que completamente nas sobras, nos restos,
no que ficou de fora e retorna a algum tipo de cadeia produtiva de forma
perversa e violenta. O próprio significante que nomeia a substância é uma onomatopeia
referente à ruptura, quebra, crack - alusão ao som produzido quando a droga é
queimada – curiosamente também usado para referir-se a momentos agudos de crise
econômica. Grande metáfora para um cenário de desagregação social. A
origem da droga advem da forma impura da cocaína. Os utensílios
que precariamente funcionam como
cachimbo são, não raro, retirados de depósitos de lixo - latas de alumínio de
cerveja ou refrigerante, copos plásticos de água mineral, válvulas de aparelhos
eletrônicos, lâmpadas, canetas, garrafas plásticas, ou quaisquer outros objetos
encontrados pelas ruas que possam adaptar-se à forma de cachimbo, muitas vezes
compostos por substâncias extremamente nocivas à saúde - como o alumínio ou até
mesmo metais pesados encontrados nas válvulas retiradas de aparelhos
eletrônicos. O veículo para a combustão utilizado nos
cachimbos da pedra é a cinza do cigarro. Restos, restos...
Por conta de suas características socioeconômicas e
culturais, por tratar-se, em tese, de uma droga barata, relegada na grande
maioria dos casos ao lumpemproletariado, o crack não traz
a ritualística e glamour que cercam outras drogas largamente
incorporadas e consumidas pelas classes média e alta. Quem desconhece o largo
consumo de maconha nas universidades mundo a fora? Quem desconhece as festinhas
do jet set regadas a
cocaína? Quantas dessas pessoas do high society já
tiveram as casas invadidas sem mandado de busca e apreensão? Quantas já
sofreram calúnia, injúria e difamação em
programas jornalísticos comandados por "profissionais" que
ignoram os princípios éticos elementares do ofício? Que tratam a ética, o
respeito à dignidade humana, o princípio da presunção de inocência com um tom típico dos que se
locupletam com a barbárie e com a miséria, arraigados que estão ao que há
de mais cruel na história desse país de capitães do mato e navios negreiros?
O usuário de crack é o mais penalizado nesse
cenário de patologia social que envolve um setor estruturado, globalizado e com
altas ramificações financeiras que sequer temos conhecimento devido à economia
de mercado extremamente volátil, impossível de ser regulamentada pelo
estado. A ONU estima - pois não há como definir índices precisos -
que o negócio da droga movimenta mais de 500 bilhões de dólares ao ano,
faturamento superior ao comércio internacional de petróleo, perdendo
apenas para o tráfico de armas (Link
para Relatório Mundial sobre Drogas 2011, produzido pela ONU).
Ainda assim, em muitas cidades do Brasil, o estado continua
terceirizando sua "política" para setores que tratam o assunto de
forma absurdamente apartada das chamadas políticas de inclusão, delegando para
instâncias que pregam a execução sumária desses jovens - pobres e quase sempre
pretos. Principalmente nas pequenas cidades do Nordeste, onde vemos segmentos
da segurança pública desconhecer estratégias que vem mostrando-se mais efetivas
que a tal "guerra às drogas" - a exemplo dos programas de redução de danos, a diferenciação
clara entre usuários e traficantes, medidas socioeducativas, acolhimento em
grupos orientados por equipes multidisciplinares formadas por psicólogos,
psiquiatras, antropólogos, sociólogos e demais esferas de saúde e humanas.
Até quando as cercas eletrificadas postas nos muros das
residências da classe média garantirão o conforto para que possamos dormir
tranquilos professando uma retórica cristã ou social democrata que tanto se
refere à cidadania? Até quando porteiros eletrônicos, grades, carros com seus
vidros cuidadosamente fechados, empresas de segurança patrimonial
garantirão uma falsa sensação de segurança?
Zonas segregadas,
verdadeiros guetos, espalham-se por esse país a fora, locais onde
a arbitrariedade policial deixa bem claro que ali as leis são outras,
onde o estado e a sociedade destilam tranquilamente seu descaso e abandono à
vida de milhares de jovens que já nascem com o destino selado de serem
linchados e queimados vivos sem direito a julgamento, sob aplausos da população
ignorante que vibra ao ver sangue, sob os holofotes do justiçamento da mídia.
Tudo com a tolerância da sociedade culturalmente acostumada a prescrever os
dignos e os indignos - que o digam os índios, os negros, os gays, os pobres, os
nordestinos, os favelados, os loucos, os leprosos, os rebeldes... Os
"nóia", "sacizeiros" e outras denominações que levam o
usuário de crack são apenas mais uma categoria na nossa imensa lista
de uma perversa dívida social que intensifica o medo, a insegurança, a
violência.