segunda-feira, 18 de junho de 2012

Fechando os olhos ao som de fuzis


A política de drogas brasileira segue proibicionista. Isso significa que mantém as bases repressivas, moralistas e seletivas contra determinados segmentos da sociedade (o que denota o corte racista e higienista que marca o proibicionismo

Thiago Rodrigues - professor adjunto no Departamento de Estudos Estratégicos e Relações Internacionais da Universidade Federal Fluminense

Quando escopetas, pistolas automáticas e cassetetes estão violenta e decididamente voltados para sua cara, ainda que você saiba todos os instrumentos legais que lhe protegem, o silêncio vem como resultado do medo, da impotência e de uma revolta confusa.
Casa de periferia, ali se ajeitam em dois ou três cômodos, que servem simultaneamente como quarto, sala, cozinha e banheiro, um grupo de jovens - pedreiros, empregadas domésticas, desempregados ou profissionais de serviços precários, insalubres, inseguros, mal pagos. Os blocos estão à mostra, sem reboco, portas e janelas existem por uma questão quase que simbólica, pois não oferecem algum tipo de privacidade ou segurança. O ambiente é calorento e uma ansiedade paira no ar potencializando um desconforto constante.
É uma tarde de um dia útil qualquer. Pouco importa, o cenário se repete. Pelas redondezas mercadinhos, igrejas de várias congregações, lojas de material de construção, botecos, mototaxistas, crianças correndo, homens embriagados, mães, e os cuidadores da vida alheia. Nenhuma praça. Nenhum lazer gratuito e de qualidade à vista. Atividades artísticas e culturais?! O que é isso? No ar ouve-se uma música que vários acompanham efusivamente: "(...) quem nunca namorou, quem nunca fez amor, no carro, no carro, tomou umas e outras e deu uma fugidinha, no carro, no carro (...) carro parado com vidro embaçado, cuidado, cuidado, é motel disfarçado". Ainda que carro, motel, e "fugidinha" sejam significantes com significados difusos para a maioria.
Em um sofá rasgado e sujo na "sala", um grupo compartilha o mal estar da fissura, da abstinência - os cinco ou 10 contos que aparecem com muito custo, desaparecem rapidinho com uma droga "miada e fraca" (sic), mas que continuam desejando por ser a única disponível na área. Reclamam que nem mesmo tem um goró (cachaça) ou uma pacaia (fumo artesanal) para "destilar". Conversando um pouco mais, descobrem-se as mágoas profundas de cada um ali. De repente, chegam um ou outro, com os tais cinco ou 10 contos que conquistaram em alguma diária, biscate ou reciclagem, e vão ali por não terem um espaço melhor para usarem a droga. Inevitável, o entra e sai são constantes. A vizinhança está ligada. A vizinhança vigia, controla, delata, pune. 
Na cabeça de muitos, aquele contexto não se trata de um grupo tentando algum escapismo frente a uma situação agressiva, para o senso comum são sub-cidadãos que justificam aprioristicamente qualquer ato que infrinja até mesmo as garantias constitucionais elementares da sociedade burguesa.
Não há armas, nem grande quantidade de droga. Mas por desinformação, questões de fundo psíquico ou incapacidade de diálogo, qualquer motivo fútil dá origem a bate-bocas e até mesmo a agressões físicas. Na própria condição que trazem de incomunicabilidade, divergências sempre resvalam de pronto para uma agressão verbal expressa por um vocabulário escasso e repetitivo. A gritaria, então, extrapola a porta e a janela franzinas. A vizinhança está a cada momento mais atenta como quem espera pelo grande desfecho de um filme de terror. A vizinhança já conhece bem o perfil desses personagens - eles alimentam o café da manhã, o almoço e o jantar de noticiosos em rádios, TVs e jornais impressos - garantem uma audiência sedenta pelo linchamento moral público dos que de uma forma ou de outra ficam de fora do espólio de séculos da pilhagem na terra brasilis.
Demorou! Após desferir um chute na porta, entra no cubículo o comandante da operação de arma em punho como quem está a atuar ao lado de Arnold Schwarzenegger. Com ele, um séquito de cerca de três homens fortemente armados. Um rapaz de seus 28 anos, ajudante de pedreiro e de origem camponesa, é o mais visível no dispositivo cênico do tal sofá, é, coincidentemente (?), o mais franzino e de pele mais intensamente negra. Após ouvir o berro "cadê a droga, cadê as armas?", leva no peitoral vários sopapos de um soldado aparentando medir 2 metros e físico de lutador de jiu-jítsu, que fez questão de deixar bem claro que não estava ali para ouvir respostas ou explicações. A cada tentativa de identificar-se, de demonstrar laços familiares ou outros laços sociais, o policial irritava-se mais e mais, os socos no peitoral do rapaz usuário de droga tornavam-se mais e mais agressivos. As falas tentando colocar-se como portador de alguma identidade e pertencimento social provocavam na tropa rompantes tais como: "você não é nada", "você é um verme", "não cite o nome da sua mãe", "vagabundo", "cala a boca" e lá iam mais sopapos. 
Ato contínuo, o comandante adentra o que seria o quarto do casal - na verdade um espaço que apenas identificava de forma ainda mais intensa a vida caótica e desestruturada dos moradores, pois era uma mistura de depósito de roupas sujas, de revistas velhas, garrafas plásticas vazias, restos de comida, bitucas de cigarro, cachimbos apropriados ao uso do crack, e outras coisas que sob um estado de espírito acuado pela arbitrariedade policial não se é capaz de perceber. O comandante atuava como se estivesse numa grande operação à captura de algum capo di tutti i capi, de algum Matteo Messina Denaro da máfia siciliana, um grande chefão, um super narcotraficante. O que havia realmente eram resquícios de consumo droga - sobras da substância e cachimbos - nada que se configurasse como tráfico de drogas, e um grupo de jovens periféricos acuados.   
O universo que cerca o usuário de crack estrutura-se quase que completamente nas sobras, nos restos, no que ficou de fora e retorna a algum tipo de cadeia produtiva de forma perversa e violenta. O próprio significante que nomeia a substância é uma onomatopeia referente à ruptura, quebra, crack - alusão ao som produzido quando a droga é queimada – curiosamente também usado para referir-se a momentos agudos de crise econômica. Grande metáfora para um cenário de desagregação social. A origem da droga advem da forma impura da cocaína. Os utensílios que precariamente funcionam como cachimbo são, não raro, retirados de depósitos de lixo - latas de alumínio de cerveja ou refrigerante, copos plásticos de água mineral, válvulas de aparelhos eletrônicos, lâmpadas, canetas, garrafas plásticas, ou quaisquer outros objetos encontrados pelas ruas que possam adaptar-se à forma de cachimbo, muitas vezes compostos por substâncias extremamente nocivas à saúde - como o alumínio ou até mesmo metais pesados encontrados nas válvulas retiradas de aparelhos eletrônicos. O veículo para a combustão utilizado nos cachimbos da pedra é a cinza do cigarro. Restos, restos... 
Por conta de suas características socioeconômicas e culturais, por tratar-se, em tese, de uma droga barata, relegada na grande maioria dos casos ao lumpemproletariado, o crack não traz a ritualística e glamour que cercam outras drogas largamente incorporadas e consumidas pelas classes média e alta. Quem desconhece o largo consumo de maconha nas universidades mundo a fora? Quem desconhece as festinhas do jet set regadas a cocaína? Quantas dessas pessoas do high society já tiveram as casas invadidas sem mandado de busca e apreensão? Quantas já sofreram calúnia, injúria e difamação em programas jornalísticos comandados por "profissionais" que ignoram os princípios éticos elementares do ofício? Que tratam a ética, o respeito à dignidade humana, o princípio da presunção de inocência com um tom típico dos que se locupletam com a barbárie e com a miséria, arraigados que estão ao que há de mais cruel na história desse país de capitães do mato e navios negreiros?
O usuário de crack é o mais penalizado nesse cenário de patologia social que envolve um setor estruturado, globalizado e com altas ramificações financeiras que sequer temos conhecimento devido à economia de mercado extremamente volátil,  impossível de ser regulamentada pelo estado.  A ONU estima - pois não há como definir índices precisos - que o negócio da droga movimenta mais de 500 bilhões de dólares ao ano, faturamento superior ao comércio internacional de petróleo, perdendo apenas para o tráfico de armas (Link para Relatório Mundial sobre Drogas 2011, produzido pela ONU).
Ainda assim, em muitas cidades do Brasil, o estado continua terceirizando sua "política" para setores que tratam o assunto de forma absurdamente apartada das chamadas políticas de inclusão, delegando para instâncias que pregam a execução sumária desses jovens - pobres e quase sempre pretos. Principalmente nas pequenas cidades do Nordeste, onde vemos segmentos da segurança pública desconhecer estratégias que vem mostrando-se mais efetivas que a tal "guerra às drogas" - a exemplo dos programas de redução de danos, a diferenciação clara entre usuários e traficantes, medidas socioeducativas, acolhimento em grupos orientados por equipes multidisciplinares formadas por psicólogos, psiquiatras, antropólogos, sociólogos e demais esferas de saúde e humanas.
Até quando as cercas eletrificadas postas nos muros das residências da classe média garantirão o conforto para que possamos dormir tranquilos professando uma retórica cristã ou social democrata que tanto se refere à cidadania? Até quando porteiros eletrônicos, grades, carros com seus vidros cuidadosamente fechados, empresas de segurança patrimonial garantirão uma falsa sensação de segurança?
Zonas segregadas, verdadeiros guetos, espalham-se por esse país a fora, locais onde a arbitrariedade policial deixa bem claro que ali as leis são outras, onde o estado e a sociedade destilam tranquilamente seu descaso e abandono à vida de milhares de jovens que já nascem com o destino selado de serem linchados e queimados vivos sem direito a julgamento, sob aplausos da população ignorante que vibra ao ver sangue, sob os holofotes do justiçamento da mídia. Tudo com a tolerância da sociedade culturalmente acostumada a prescrever os dignos e os indignos - que o digam os índios, os negros, os gays, os pobres, os nordestinos, os favelados, os loucos, os leprosos, os rebeldes... Os "nóia", "sacizeiros" e outras denominações que levam o usuário de crack são apenas mais uma categoria na nossa imensa lista de uma perversa dívida social que intensifica o medo, a insegurança, a violência. 

Um comentário:

Ernesto Ribeiro disse...

PERFEITO.

O texto definitivo sobre essa chaga da sociedade, analisando cada aspecto de maneira objetiva.

Bastante informativo, profundamente reflexivo. Quem lê isso fica desarmado. Ninguém pode se manter impassível ao ler esse artigo.

Merece ser leitura obrigatória em todas as escolas.

Parabéns, professora Gardênia Dultra.